Mesmo ao som das cornetas tibetanas que me acordam em tons
barítonos e baixos, são ainda 4 da manhã mas, bolas, já tenho fome :)! A imagem da
saciedade futura vai-se formando à medida que me levanto e saio para a rua... a retina vai-se habituando aos tons
avermelhados e coloridamente detalhados do mosteiro tibetano, ao fumo do lixo
plástico queimado pelas crianças da slum ali perto, aos fios infinitos de massa
feita à mão, ao bêbado que dorme em
cima de tijolos e todos os dias muda de penteado (hoje está particularmente
“indian looking”, com um carrapito no cimo do 7ºchackra - Shiva style!); também
me passam entre pestanadas senhoras que carregam fardos impossíveis e, de olhos bem abertos,
cumprimento o indiano que vende a liberdade de passarinhos engaiolados ali no local onde as gentes vão procurar liberdades e iluminações “only 50 rupees to set them
free…and very much enjoy!”…
Mas eu só penso, confesso, em comer. E o quê? Deixa ver... Um momo, ou 2, ou
melhor, 10 momos (um prato inteiro!). É isso! Chineleio até ao fundo da rua onde
está o fiel Tsering, jovem tibetano meio escravizado por uma senhora velhotita
gorda de rabo dono de cadeiras largas e cujo peito transbordante é também monipolizador de
balcões do restaurante.
“Tsering, please, “momos”, ok?”
(Aqui o capítulo fica interessante principalmente para o meu
assumido estereotipo dos interesses do público italiano – comida! “Ecco, mangiare mangiare!”) .
Então, a titulo turístico-informativo, um apontamentozito sobre o “momo”(ou
dois, ou dez): espécie de pastel cozido a vapor, maravilha para o paladar
sul-asiático, mais forte se frito, variedade veg. e não-veg., mas sempre
obrigatoriamente mergulhado como quem faz sopinhas, no belo do molhinho central
do prato.
O momo é uma invenção que é consumida nepaleso-fanaticamente uma vez
por dia e que, juntamente com o dalbhaat (lentilhas e arroz) sustenta a vida
desta nação sem mais variações e combinações a não ser dalbhaat-momo ou
momo-dalbhaat ou dalbhaat só.) Aqui um exemplo de um pratinho de momo, combinado com uma thukpa (que por seu lado faz a combinação binómica diária momo-thukpa para os tibetanos):
Bom, eu ali assim fiquei a pequeno-almoçar os meus momos
contentíssima e sofregamente. Entre deglutires e sopinhas no molhinho, tempo
para ler 3 noticias no "Kathmandu post"(jornal quotidiano) :
1. Sra. foi espancada pela família com acusação de
ser bruxa e ter lançado mau-olhado para a cunhada que, supostamente por culpa do olho-mau cunhadesco, não consegue ter filhos;
2. tristemente também, o muito querido Ramvakari, de belo
elefante que era, após capturado e pseudo-protegido numa Wildlife Reserve
qualquer, morreu por falta de tratamento, claro, ninguém foi declarado
responsável e nem se coloca essa pergunta no artigo;
3. como nota final, ali numa vilazita perto de Kathmandu,
uns jovens estavam a fazer um exame e tinham tanta motivação para passar que
trouxeram a família atrás para ajudar e, como os examinadores não deixavam
entrar a tia e o periquito, desataram todos a mandar pedras para a sala de
exame e assim já entraram para, autorizadamente, batotar – a
determinação foi compensada!
Depois disto, último momo deglutido com sons tipicamente e
portuguêsmente nasalados, levantar e
partir rapidamente, arrastadamente a barrigonada até ao micro-bus local. Gritar
e gritar “Thamel”e um micro para finalmente. Entram os meus 10 momos
compactados e curvam-se para caber com outros mil passageiros, um micro-espaço
para recheio-macro.
Paragem perto de Durbar Square de Kathmandu onde se acumulam
uns montinhos de gente a pulular e gesticular braços no ar. Os momos ainda por
digerir aproximam-se curiosos e rápidos. Nisto, vê-se uma menina de tipo 6 anos
sentada numa cadeira, toda maquilhada e encarnada. “Olha! É a Kumari!"

Kumari Devi, a deusa viva, venerada pelos nepaleses, por invenção e
imposição de um rei passado. Curioso que a deusa aprecia especialmente
chocolates kit-kat e não tanto as rupias que lhe jogavam no colo enquanto
tentavam tocar-lhe os pés em fervorosa adoração e devoção das gentes.
Estranha esta coisa da devoção, que me é tão imensamente
desafiante. Ser devoto a uma pessoa, deus, causa… muito difícil, acho que só
experimentei ainda devoção a uma ideia, nada mais. Confesso uma invejinha latente quando observo
estes devotos sem necessidade de perguntas/dúvidas, multidão que não sente os
momos na barriga a remexer quando se trata de oferecer/pedir/rezar/dedicar algo
a esta deusa-menina.
Não, ainda não desenvolvi muito essa capacidade de fé
total inabalável em algo que não se apresente à minha mente como minimamente lógico
ou ao corpo senciente como ressonantemente real/naturalmente verdadeiro. A
propósito da devoção e fé já vos teclo mais tarde, num outro post…
Mas deixando a deusa e sua cadeira, que só por acaso naquele
dia e hora especifica se podia deixar ver e tocar pelos mortais durante o ano
–coincidência- dirijo-me a uma Associação chamada “Seeing Hands” (mãos que
vêem) onde iria fazer uma entrevista e vídeo. Ali trabalham várias pessoas
nepalesas cegas que aprenderam com um grupo de voluntários de todo o mundo a
fazer massagens sem ver. Para além de trabalho administrativo, estes invisuais
normalmente marginalizados pela própria família e sociedade nepalesa,
conseguiram um abrigo, um emprego e um espaço onde são apreciados pelos
ocidentais que ali chegam todos enrodilhados pelas montanhas do
Annapurna.
É verdadeiramente entusiasmante o que conseguiram realizar
e, dizem as vozes massajadas, que o serviço ali prestado é de elevada
qualidade!
Daniavad (obrigado) pela disponibilidade e “jam jam”(vamos
embora).
A passos tímidos e hesitantes, tento verificar se tenho dinheiro
suficiente no rolo de notas nepalesas amachucadas negligentemente no bolso.
Procuro especialmente a nota com o
elefante estampado (a mais elevada, que corresponde a 10 euros – 1000 rupias).
Mas tenho só 1 cabrinha, 3 rinocerontes, 2 espécies de bâmbis, uma data de
búfalos e 1 tigre. Nada mal, cerca de 900 rupias, 9 euros, posso avançar e não
me preocupo com amanhã também. Engraçado este dinheiro que substituiu a carita
laroca do rei nepalês por animais e montanhas após a des-monarquização recente
para um sistema que ainda não se percebe muito bem (de notar que há 4 anos que
tentam fazer a dita nova constituição do país…).
Rápido rápido, no cicle-rickshaw volto para o bus stand,
micro micro-me de novo e regresso a Boudha toda “momo- amontoada”. Micro-saio
do autocarro, passo pela estradinha escondida ao lado do portão oficial (que
senão tenho que pagar 7,50EUR só por ter tido preguiça de procurar outra
entrada e pareço a turista de boné e meias até aos joelhos) e vou até à Stupa
gigante.
Olhos grandes budescos
que me seguem enquanto giro circularmente,
horariamente, as rodinhas
mântricas “om mane padme um”. Pausa a meio para observar as velinhas aos pés
das várias estátuas adoradas. Luzinhas de manteiga que se os fiéis a Buda
derretidamente acendem para boa sorte, iluminação aos próprios ou aos falecidos
ou para mais alguma versão que os comerciantes destas velinhas criam e
descriam. Tanta tanta devoção e eu nada. Claro, sente-se um pouco de
apaziguamento da mente por ali no meio de tanto fervor de fés, mas ainda assim,
mas ainda assim…
Giro giro e é noite já. 7 e meia da tarde. Escuro e não há
luz agora, contar só com 2 ou 3 lâmpadas de qualquer casa com gerador, velinhas pequeninas
a derreter e a mini-lanterna de bolso para chegar bem a casa. Passos “slowly
but surely”, que a esta hora é preciso ter cuidado com os cães de rua. Faltam
ainda 3 curvas para chegar à guesthouse e os cães já se levantaram. É impressionante como
passam os dias esparramados a dormir de boca aberta e, de noite, são os
bichos-papão do recolher! Ladram, perseguem-te, querem-te morder, rosnam e
entram onde estás. É preciso andar confiante, mesmo cheio de medo. Outra coisa
difícil esta, a confiança que tudo irá correr bem, nada de mal vai acontecer e
não vou precisar ir ao hospital apanhar 5 vacinas contra a raiva nas próximas
horas (epá, nem sei onde fica o hospital por estas bandas e já se vai tudo
andando pra casa comer mais momos e dormir). “Cãozinho lindo, tá lá aí
sossegadinho, que eu vou só até ali… “. pé ante pé, uma rosnadela, uma corrida
perseguidora e vá lá, salva por um monge com um pau que o afugenta
amedrontado. Uff, portão aberto, jardim atravessado, escadas, 1º, 2ºandar,
corredor, porta lá ao fundo, e chave agora onde está? Típica bolsa de
mulher-cartola de mágico a fazer saltar cabrinhas desenhadas em notas, papéis
dispersos, telemóvel que faz barulhos exagerados, remexer remexer e chave!
Sapatos cá fora, porta aberta e…. vum, cama!
Agora releio deitada os ensinamentos de um Rinpoché tibetano
de há uns dias atrás e, assim que pestanejo a 2ºpágina do caderno, a luz ,que
entretanto regressou, vai-se inexplicavelmente. Pronto, é hora de dormir, é hora
que algo aconteça. Foi-se a neo-luz e os momos ainda ali a fazerem-se sentir.
Talvez fosse o molhinho das misturadas mil, talvez a velocidade devoradora, mas
algo não foi totalmente digerido hoje… correr correr para o wc… pronto,
vomita-se os momos! Fim do dia. Muita coisa, muito pensamento e momento e
micro-macro, lusco-fusco em flashes de acontecimentos e algo tem que sair cá
para fora… Não sei se bem ou mal, ficou tudo o resto mas, por hoje, foram-se os
momos.